Em 1961, com a disparada da inflação e a forte desvalorização cambial, a situação se agravou. A Panair, em crise, já havia repassado quase todas as suas rotas internacionais para outras empresas. A Varig se sustentava basicamente com seus vôos diretos do Rio para Nova Iorque. A Real, quebrada, foi vendida para a Varig. Depois da renúncia de Jânio Quadros, a crise se agravou. Ruben Berta procurou o então primeiro – ministro Tancredo Neves, que negociou medidas favoráveis ao setor.
A Varig soube aproveitar as novas oportunidades, entre elas a redução dos custos de financiamento das aeronaves compradas antes da desvalorização cambial, e cresceu. Abriu rotas para a Europa e Japão. Com o golpe militar, em 1964, passou a dominar a aviação nacional. A Panair, sua principal concorrente cambaleava depois de vendida pela Pan American aos empresários paulistas Rocha Miranda e Wallace Simonsen.
Na noite de 10 de fevereiro de 1965, a Panair teve sua concessão abruptamente cassada pelos militares, num episódio até hoje não esclarecido. Especula-se que teria sido uma manobra do regime para favorecer a Varig. Especialistas em aviação são unânimes em dizer que a Panair estava quebrada. Harro Fouquet, nessa época diretor de rotas da Varig, não entra no debate político. Mas lembra que, na manhã de 10 de fevereiro, antes de a cassação ser anunciada, seu chefe imediato em São Paulo, Helio Smidt, o chamou em sua sala e avisou: “Te manda para o Rio porque o Velho pode precisar de você”. O Velho era Ruben Berta, como era chamado, embora tivesse 57 anos. À noite a Varig assumiria as rotas, os aviões e os passageiros da Panair.
A partir daí, a Varig tornou-se monopolista nos vôos internacionais. A companhia se beneficiava de medidas protecionistas do governo. Foi fixada uma tarifa mínima para evitar que as empresas internacionais fizessem dumping (redução artificial de preços) para competir com a aérea brasileira. Além disso, havia limitações de vôos de companhias estrangeiras para o Brasil, a fim de garantir que a Varig ficasse com a maior parte dos passageiros brasileiros.
A Varig reinava sozinha, mas era reconhecida pela excelência de sua operação. Além de segurança de voo, oferecia serviços de primeira em suas aeronaves. Por três anos ganhou o prêmio de melhor serviço de bordo do mundo. Era uma das poucas companhias a servir caviar na primeira classe. Abriu escritórios nos lugares mais sofisticados no exterior. Em Paris, tinha uma agência imponente noChamps-Elysées. Os brasileiros em viagem transformavam as agências da empresa em miniembaixadas.
A proteção era total. Quando, em 1970, a Pan American incorporou o novíssimo Boeing 747-121 à sua frota internacional, foi impedida de voar com a aeronave até 1974, quando a Varig passou a operar os novos DC-10. Havia, porém as contrapartidas. Para garantir facilidades, a Varig transportava coronéis do Departamento de Aviação Civil, o DAC, responsáveis pela regulamentação do setor, em primeira classe. Os diplomatas do Itamaraty também se aproveitavam da companhia. Era comum um embaixador trocar um bilhete de primeira classe por dez de classe econômica e, na hora do embarque, pedir um upgrade para a primeira. “Eles acabavam ganhando dez passagens de primeira classe em vez de uma“, contou um ex- diretor da empresa.
Políticos também tiravam seu naco. A maioria voava de primeira classe. Ou pediam que a companhia abrisse rotas para suas cidades, em voos antieconômicos. O retorno vinha em forma de apoio: o Congresso votava leis que favoreciam a empresa, como impedir que outras companhias brasileiras, como a Vasp e Transbrasil, voassem para o exterior.
Com a idéia de criar uma aviação civil robusta, o regime militar decidiu ressuscitar a aviação regional. A estratégia foi favorecida pela construção do avião Bandeirante, nascido nas pranchetas dos engenheiros do Centro Técnico Aeroespacial, que seria o embrião da Embraer. O avião pequeno permitia pousos e decolagens em aeroportos menores.
Para que o negócio se desenvolvesse, os militares resolveram conceder um subsídio às empresas que operassem estes voos. Ele se dava por meio da compra de um determinado de bilhetes para garantir a ocupação da aeronave. Imaginava-se que a oferta e a freqüência dos voos atrairiam cada vez mais passageiros, Quando as rotas se fortalecessem, as empresas não mais necessitariam do suporte estatal.
A Varig abriu a subsidiária Rio Sul, que ligava cidades do interior da região Sul. O comandante Rolim Amaro, ex-piloto da Vasp, transformou sua empresa de táxi- aéreo, a Transportes Aéreos Marília – TAM, em uma companhia regional regular. O problema é que as companhias se aproveitaram das cotas de assento e não se esforçavam nas vendas, continuando a depender dos aportes públicos.
Com 70% do mercado de vôos internacionais garantidos e 40% dos nacionais, a Varig crescia. No final dos anos 70, para compensar os problemas decorrentes da crise de petróleo que levaram o Brasil à bancarrota, a Varig investiu em uma rede de hotéis, a Tropical, e passou a atrair passageiros para o mercado interno. A crise era amenizada com os subsídios concedidos pelo governo, incluindo combustível mais barato. Não apenas a Varig cresceu, mas a Vasp e a Transbrasil empinaram.
Os ventos começaram a mudar a partir de 1986, no governo José Sarney, com a edição do Plano Cruzado, que congelou os preços e as tarifas. O plano fracassou e a inflação disparou. Com o combustível nas alturas, os custos das empresas aéreas aumentaram sem que elas pudessem repassá-los. As perdas para as companhias, nesse período, foram estimadas em 2,8 bilhões de dólares.
O governo Collor só agravou o quadro. Collor abriu o setor aéreo à concorrência estrangeira para forçar queda das tarifas. Feita de forma atabalhoada, sem estudos prévios, a abertura foi ruinosa, principalmente para a Varig. Na época, também foi quebrado o monopólio da Varig nos vôos internacionais, permitindo que a Vasp e Transbrasil voassem para o exterior.
A Vasp tinha sido comprada, com a ajuda do governo, por Wagner Canhedo, dono de uma frota de ônibus. Canhedo, aliado político de Collor, jogou os preços das passagens artificialmente para baixo e abriu novas rotas. A Transbrasil também começou a voar com preços reduzidos para os Estados Unidos. Iniciou-se uma guerra suicida de tarifas entre as três empresas. Sem experiência em vôos internacionais, a Vasp e a Transbrasil perderam o fôlego e seus problemas de caixa logo se evidenciaram.
Despreparada para enfrentar uma concorrência que até então desconhecera e sem melhorar suas práticas de gestão, a Varig começou a perder receita. Para piorar, a companhia fizera financiamentos para renovar sua frota com aviões MD-11. O dólar subiu e a empresa entrou em moratória. Nessa época, Rubel Thomas, funcionário de carreira da Varig, era o presidente da companhia. Em 1993, para tentar equilibrar as contas da empresa, Thomas iniciou um processo de reestruturação que envolvia corte de pessoal e redução de salário.
As medidas causaram descontentamento entre os funcionários, e Thomas foi derrubado por um golpe de conselheiros da Fundação Ruben Berta. Durante uma assembléia, insuflado por um grupo de pilotos, o conselho da fundação, com 200 integrantes, decidiu que a companhia seria comandada por um colegiado de sete curadores. Thomas ficou de fora da lista e deixou a empresa. Na disputa para fazer parte do conselho de curadores, os candidatos ao posto ofereciam facilidades aos funcionários em troca de votos. Começou uma fase de descontrole nos gastos.
O comando do conselho de curadores da Fundação ficou nas mãos de um funcionário da área de controladoria, Yutaka Imagawa, sem experiência em gestão. Cabia a seu grupo escolher o presidente, a diretoria da empresa e o conselho de administração. “O comando da Varig não entendia que os tempos tinham mudado e que, para sobreviver, ela precisava reduzir o custo da operação”, disse um diretor.
Os pilotos tinham benefícios muito superiores aos concedidos por outras companhias internacionais. Os funcionários levavam amigos e parentes em viagens pelo mundo sem pagar nada. Fazia-se vista grossa para roubos de mercadoria – de caviar a mantas das aeronaves. Os gastos com caviar chegavam a 6 milhões de dólares por ano. Boa parte era desviada. Era comum encontrar em festas badaladas do Rio de Janeiro latas de caviar iraniano com o selo da Varig.
Em janeiro de 2001, Nenê Constantino, um empresário com jeito caipira, dono de uma grande frota de ônibus, criou a Gol Linha Aéreas seguindo um modelo de baixo custo e baixo preço já existente na Europa e nos Estados Unidos. A estratégia foi possível porque havia sido derrubada pelo Congresso a política de tarifas mínimas (até então as companhias não podiam cobrar tarifas mais baixas do que o patamar estabelecido em lei, ainda que seus custos permitissem isto). A decisão aumentou a competição no setor. A Transbrasil foi a primeira a sucumbir. Em dezembro daquele ano, a empresa deixou de operar.
No final do governo Fernando Henrique Cardoso, a situação da Varig se tornara insustentável. As dívidas da empresa com a Infraero – a estatal de infraestrutura aeroportuária -, pelo uso dos espaços dos aeroportos, chegaram à casa dos milhões. A empresa tinha uma dívida colossal com a Petrobras Distribuidora. Também não pagava os bancos credores, principalmente o Banco do Brasil, nem as empresas de leasing de aeronaves e turbinas. Seus aviões começaram a ser apreendidos mundo afora. No segundo semestre de 2002, às vésperas das eleições presidenciais, o governo tentou uma saída para a empresa.
O Executivo Arnim Lore, ex- diretor do Banco Central, foi colocado na presidência do conselho da Varig por pressão dos credores. Foi feito um plano de reestruturação. Com a ajuda do Banco de Desenvolvimento Econômico e Social, todos os credores trocariam a dívida da Varig por ações da companhia e assumiriam o comando da empresa, indicando os executivos para administrá-la. O BNDS daria um aporte de capital para que ela modernizasse a frota e tivesse fôlego para continuar operando. Havia uma condição: A Fundação Ruben Berta teria de abrir mão do controle e da gestão, limitando a sua participação a 5% do capital da empresa.
O negócio estava praticamente concluído quando as pesquisas eleitorais começaram a indicar a provável vitória de Lula sobre o candidato do PSDB, José Serra! Os dirigentes da Fundação acharam que, num governo do Partido dos Trabalhadores, a empresa seria socorrida sem que precisassem abrir mão do controle“, contou um ex- diretor da Fundação. Dias antes da assinatura do acordo com o governo, Yutaka Imagawa comunicou a desistência do negócio.
Com Lula já eleito, iniciou-se em novembro de 2002, o processo de transição da presidência da República. O local escolhido para as reuniões das equipes de trabalho do novo governo foi o Centro de Treinamento de Pessoal do Banco do Brasil – um prédio comprido, de concreto aparente, numa área descampada de Brasília. Numa manhã de dezembro, Daniel Mandelli, então presidente da TAM, chegou ao Centro de Treinamento para um encontro com José Dirceu, o coordenador político do novo governo.
A TAM tinha sido a transportadora da equipe de Lula durante a campanha presidencial, e Mandelli e Dirceu ficaram amigos. Um homem alto, forte, calvo e com o rosto avermelhado dos italianos da colônia, Daniel Mandelli chegara á presidência da companhia depois da morte, um ano antes de Rolim Amaro, seu cunhado. No encontro, Dirceu disse a Mandelli que a fusão com a TAM, que passaria a ser a controladora da nova empresa, seria a única saída do governo para salvar a Varig e para melhorar a situação da TAM, também com sérios problemas de caixa. Mandelli saiu satisfeito. Logo tratou de encomendar á LCA Consultores, empresa de consultoria que pertencia ao atual presidente do BNDES, Luciano Coutinho, um estudo da viabilidade da fusão.
A Varig não tinha muito tempo. Por causa da incerteza do mercado sobre qual seria a política econômica do novo governo, o dólar praticamente triplicara e elevara os custos da companhia, quase todos em moeda americana, na mesma proporção. Logo no começo de 2003, um avião Boeing 777 da Varig foi apreendido no Aeroporto de Paris- Charles de Gaulle, enquanto os passageiros aguardavam o embarque.
Um grupo de pilotos procurou o recém-empossado presidente do BNDES, o economista Carlos Lessa, em busca de socorro. Ele se dispôs a ajudar e montou uma estratégia. Sua proposta era semelhante à apresentada à Fundação Ruben Berta no final do governo Fernando Henrique. Os credores trocariam dívidas por ações e o BNDS entraria com dinheiro novo, subscrevendo ações da Varig. Nesse caso, o banco também seria sócio da companhia. “Não era nada de muito diferente do que o Luciano Coutinho vem fazendo agora no BNDES, associando-se a uma série de empresas. Com a diferença de que, na minha visão, a Varig era estratégica para o país“, disse Lessa, numa tarde quente de abril deste ano, na sua casa, no Rio.
De camisa e calça de linho claro e batendo continuamente com a bengala no chão, Lessa contou alterado o que considera a sua via crúcis para convencer o governo a salvar a empresa. “ Eu queria salvar a Varig, e não sua estrutura administrativa. Nós salvávamos e limpávamos a companhia. Tirávamos o grupo de controle e mandávamos os novos administradores averiguarem os crimes contra o patrimônio“.
Cruzou as mãos sobre a bengala, apoiou o queixo e relembrou: “ Aquilo era uma roubalheira. A Varig pagava percentuais para agências de viagens mais altos do que qualquer companhia. Até o amendoim comprado pela Varig era o mais caro do mundo porque era fornecido por uma empresa de um ex-dirigente da Fundação.”
Lessa achava que tinha um trunfo para sensibilizar o governo: a ação de Defasagem Tarifária que tinha sido movida pela Varig e já havia sido ganha em primeira e segunda instâncias. Pela ação, a Varig teria de ser ressarcida dos prejuízos que tivera no congelamento de preços do Plano Cruzado. Estimava-se que teria mais de 4 bilhões de reais a receber do Tesouro. Dessa forma, seria feito um acerto de contas e a Varig quitaria suas dívidas com as estatais.
Houve uma reunião no Planalto com o presidente Lula e os principais credores – Banco do Brasil, Infraero e Petrobras Distribuidora -, para que o plano fosse apresentado. O Banco do Brasil e a Infraero concordaram com o acordo. O então presidente da Petrobras Distribuidora, Rodolfo Landim, com apoio da ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, não aceitou. Landim disse que continuaria exigindo que a Varig pagasse o combustível antecipado.
Com a negativa do executivo, Lula pediu a Lessa que procurasse outra saída. O economista, que já havia conseguido o aval dos credores privados para a proposta, deixou a reunião furioso. “ A Varig era a empresa de bandeira brasileira. Tinha que ser salva. Todos os países europeus fizeram isto com suas aéreas em crise. Até os Estados Unidos socorreram suas companhias. Agora estamos perdendo 2 bilhões de dólares por ano em superávit comercial porque os brasileiros estão voando em empresas estrangeiras e mandando as divisas para os países delas, “ protestou.
A aviação brasileira, segundo ele, é mais frágil que a européia e a americana porque, aqui, quase tudo é importado, do aluguel de avião às peças de reposição, enquanto lá fora as empresas compram em suas moedas. Além disso, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos o combustível de aviação é subsidiado pelo governo.
Rodolfo Landim é um homem magro, comprido, de olhos azuis arregalados que parecem querer saltar das órbitas. Funcionário de carreira da Petrobras, ele fora colocado na distribuidora logo no começo do governo Lula por sugestão de Dilma Roussef. Ele tinha suas razões para recusar o plano de Lessa. Quando chegou á empresa, dia 31 de janeiro de 2003, a primeira coisa que lhe caiu no colo foi a dívida da Varig. O rombo da aérea colocava a operação da distribuidora em risco. A estatal tinha um patrimônio de 1 bilhão de reais e a dívida da Varig era de 240 milhões.
Landim foi procurado por representantes da Varig que lhe pediram para continuar fornecendo combustível sem pagamento prévio. Uma das garantias que eles ofereciam eram os recursos da ação de defasagem tarifária do Plano Cruzado, que eles acreditavam ser votada logo pelo Supremo Tribunal Federal.
Por ser tratar de uma dívida do Tesouro, Landim, por intermédio da ministra Dilma Rousseff, pediu uma reunião com os ministros da Fazenda, Antonio Palocci, e da Casa Civil, José Dirceu. Landim perguntou a eles se era viável aceitar a ação da defasagem tarifária como garantia. A resposta de Palocci foi: “ Landim, nós vamos recorrer dessa ação até a última instância. Não faremos acordo nenhum em torno desse assunto com a Varig“.
Landim argumentou que não podia aumentar o crédito à Varig sem comprometer a Petrobras Administradora. Os dois ministros disseram que não podiam fazer nada. O presidente da distribuidora pediu então, que fosse colocado em ata do conselho da empresa, do qual os dois ministros, além de Dilma Rousseff, faziam parte, que a distribuidora não poderia aumentar a exposição de risco com a Varig. À época, ele confidenciou a diretores da distribuidora que essa era a única forma de se proteger de pressões políticas para liberar o combustível sem pagamento.
Numa sexta-feira, Landim recebeu um telefonema de um executivo da Varig pedindo que liberasse o combustível. Ele avisou que só o faria mediante pagamento prévio. Houve uma discussão entre os dois. O executivo acusou Landim de querer parar a Varig e Landim revidou dizendo que não aceitava chantagem. Avisou que só atenderia o celular até as dez da noite. Depois disso, se a Varig não pagasse, os operadores da Petrobras Distribuidora nos aeroportos não liberariam o querosene. Pela manhã, os aviões da Varig em alguns aeroportos ficaram parados.
Às 9 horas de sábado, Landim ligou o celular. Havia uma centena de mensagens na caixa postal. Uma delas era de José Dirceu, perguntando por que ele não queria vender combustível para a Varig. Landim retornou a ligação e disse: “Não sou eu que não quero vender, ministro, são eles que não querem comprar. Eu só vendo se me pagarem“.
Na Varig, o clima era de terror. Os executivos ligavam para os escritórios nos estados pedindo que raspassem o cofre. Às 11 horas, um diretor ligou para Landim avisando que tinham conseguido o dinheiro. Era uma parcela que estava reservada para pagamento de leasing de aviões. O presidente da distribuidora mandou buscar o cheque na sede da Varig, no Aeroporto Santos Dumont. Só então foi dada a autorização para a venda.
No começo de março de 2003, o presidente da Varig, Manuel Guedes, marcou uma audiência como ministro José Dirceu, no Palácio do Planalto. Guedes, funcionário de carreira, era o sexto presidente da companhia em dez anos. Por mais de duas horas, esperou pelo ministro na antessala. Já começara a anoitecer quando Dirceu surgiu à porta. Guedes levantou-se para cumprimentá-lo. O ministro mal o olhou. Limitou-se a dizer: “Eu não tenho nada para falar com vocês. A saída da Varig é a fusão com a TAM. Procure o Luciano Coutinho, que está tratando do caso junto com o Banco Fator“. Em seguida, o ministro saiu para um compromisso. Guedes, em choque, voltou para o escritório da Varig em Brasília trêmulo e sem voz.
A fusão da Varig com a TAM era um sonho antigo de Rolim Amaro. Ele procurara certa vez George Ermakoff, presidente da Rio Sul, subsidiária da Varig, pedindo que fosse intermediário de uma proposta de fusão para o comando da Fundação Ruben Berta. Na segunda metade dos anos 90, as duas empresas estavam perdendo patrimônio rapidamente por causa da crise financeira mundial. A proposta de Rolim era de uma sociedade meio a meio, mas ele seria o presidente executivo da nova companhia. Rolim costumava dizer a amigos que ele era o único que poderia enquadrar os pilotos da Varig. “Na TAM, se o piloto fala grosso eu demito. Na Varig, eles se acham deuses“.
Ermakoff levou o presidente da Fundação, Yutaka Imagawa, para um jantar com Rolim do qual também participou o ministro das Minas e Energias no governo Geisel, Shigeaki Ueki. O presidente da TAM expôs o seu plano. Imagawa nunca mais o atendeu. Rolim costumava dizer que era mais fácil falar com o presidente da República do que com o da Fundação Ruben Berta.
Agora, porém, a situação era diferente. A Fundação teria de aceitar a proposta do ministro José Dirceu ou, então, deixar a Varig quebrar. A TAM ficaria com 97% da nova empresa e a Varig com 3%. Para os funcionários da Varig, a situação não podia ser mais humilhante. A Varig tinha uma tradição de excelência tanto na segurança de vôo como no serviço de bordo. A TAM tinha um histórico de acidentes aéreos, aterrissagens desastradas. Os pilotos da Varig estavam entre os melhores do mundo e chamavam a TAM, com desdém, de “a vermelhinha“, em referência à cor da marca da companhia.
Na manhã do dia 30 de abril, Luciano Coutinho foi encarregado de fazer a proposta aos conselheiros da Fundação em uma assembléia no restaurante da instituição, na Ilha do Governador, no Rio. Indagado por um dos conselheiros se a fusão não seria resultado da pressão do governo sobre a Varig, Coutinho reagiu: “Quero dizer que jamais compartilhei ou compartilharia com qualquer tipo de pressão dessa natureza”.
Em seguida, admitiu: “Se pressão há por parte dos gestores públicos, e as há, eles se escudam em determinadas condições que lhes permitem argumentar que não podem fazer isto ou aquilo porque poderiam estar pondo em risco o patrimônio das estatais“. E concluiu: “Esse esforço que estamos fazendo é para remover este tipo de escudo, talvez em certos casos, lamentavelmente com má intenção. Não quero julgar. O fato é que fomos levados, nós todos aqui, a uma situação que não nos restou outro jeito“.
Ao final da assembléia, os conselheiros da Fundação Ruben Berta votaram a favor da proposta de Coutinho e os sete curadores capitularam, entregando o controle da empresa.
Em seguida, foi escrita uma “carta aberta ao presidente da República“ na qual afirmavam, entre outros pontos, que diante da “informação de que a fusão é defendida por Vossa Excelência como a solução para a crise do setor de aviação comercial do Brasil e, consequentemente benéfica para o país, não se admitindo soluções individualizadas; e, diante da impossibilidade de mais tempo para analisar créditos provenientes da defasagem tarifária; e, levada em consideração a absoluta intransigência de credores como a BR Distribuidora e o Banco do Brasil“, eles aceitavam o acordo. De forma dramática, diziam: “Assim, o gesto, senhor presidente, está feito. Confiando naquilo que nos foi dito sobre o seu comprometimento pessoal”.
Antes de deixar a assembléia, Coutinho prometeu que a fusão sairia. Caso não saísse, ele iria junto com os funcionários da Varig protestar em frente ao Palácio do Planalto. A proposta foi encaminhada à Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, mas nem sequer chegou ao Cade, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, encarregado de examinar se fusões e aquisições ameaçam a concorrência no mercado. Por desentendimentos entre a Varig, a TAM e o governo, principalmente sobre a participação de cada um na sociedade, a proposta de fusão foi abandonada. “O Luciano Coutinho nunca mais nos procurou. Nem para se justificar“, disse um ex-integrante do conselho da Fundação Ruben Berta.
Fracassada a tentativa de fusão, o governo autorizou um compartilhamento de assentos entre as duas companhias, o codeshare. A TAM, com uma imagem ruim, tinha aviões, mas não tinha passageiros. Já a Varig, tinha passageiros mas não tinha aviões. A operação se mostrou proveitosa para ambas. Ao final de 2003, as duas tiveram lucro. O primeiro, em vários anos. Com a melhora nos negócios, o compartilhamento foi abandonado. Surgiu então um novo problema para a Varig. Seus passageiros passaram a considerar os novos Airbus da TAM melhores do que os velhos aviões da Varig, e debandaram para a concorrência.
Denise Abreu é uma mulher alta, de cabelos claros, voz e postura firmes. Em novembro de 2004, ela trabalhava como assessora jurídica da Casa Civil. Foi escalada por José Dirceu para ser a sua representante na discussão do caso Varig. Denise era contrária ao salvamento da empresa por considerar que a Fundação Ruben Berta não tinha credibilidade. E deixou isto claro em várias reuniões. “Esses caras nunca cumpriram nenhum acordo. Deixa fechar“, ela costumava dizer.
Com o arquivamento do plano de fusão, passou-se a estudar uma solução que seria a decretação da falência da Varig e a distribuição das rotas internacionais e parte das nacionais da companhia para a TAM. A outra parte das rotas nacionais ficaria com a GOL. “Eram as empresas que tinham condições de tocar estas operações“ justificou-se ela, numa tarde fria e nublada, em sua casa, em São Paulo. O plano de reestruturação do setor seria uma espécie de Proer, o programa de saneamento bancário feito no governo Fernando Henrique, quando o banco Nacional, quebrado, foi incorporado pelo Unibanco.
“Faríamos um Proer do ar“, disse ela.
Pelo projeto, Gol e TAM tomariam financiamento de 1 bilhão de reais do BNDES. Desse total, 300 milhões seriam usados para pagar as indenizações dos funcionários da Varig que seriam demitidos e também os salários atrasados. Outros 300 milhões pagariam as dívidas com o fundo de pensão AERUS. Os 400 milhões restantes seriam usados para fortalecer a operação. A TAM incorporaria a marca Varig, que era mais forte no exterior. Era a segunda marca brasileira mais conhecida no mundo. A primeira é a Petrobras.
Estava tudo acertado para o presidente Lula assinar a Medida Provisória. Na véspera da assinatura, o ministro da Defesa José Viegas, aliado de Dirceu no governo, foi demitido depois que os comandantes do exército fizeram um pronunciamento em apoio ao golpe militar de 31 de março de 1964. O vice-presidente José de Alencar o substituiu.
Ao tomar conhecimento do plano, o vice-presidente deixou que a MP vazasse para a imprensa. Houve pressão do Congresso e dos Sindicatos do setor contra o fim da Varig, e a medida foi abandonada. Em seu lugar, surgiu a proposta de se incluir, de última hora, em um projeto sobre recuperação judicial que estava prestes a ser votada no Senado, a possibilidade de empresas aéreas também se beneficiarem da lei. Pela regulamentação do setor, não havia permissão para as aéreas entrarem em concordata. Se quebrassem, era decretada a falência.
Em meados de abril de 2005, o executivo David Zylberstaijn foi procurado pelos dirigentes da Fundação Ruben Berta com a proposta de que assumisse a presidência do conselho da Varig. Achavam que Zylberstaijn, ex- genro de Fernando Henrique, por ter sido presidente da Agência Nacional do Petróleo no governo tucano, poderia ajudar a desenrolar o nó da questão mais sensível da companhia: a falta de crédito para compra de combustível.
O executivo se entusiasmou com a empreitada e chegou a dizer que era um emprego “charmoso“. Sua condição no entanto, era que tivesse carta-branca para agir. Escolheu para trabalhar com ele pessoas que considerava chaves no processo: Omar Carneiro da Cunha, ex- presidente da Shell; o embaixador Marcos Azambuja, com grande trânsito internacional; e Eleazar de Carvalho Filho, presidente do BNDS também no governo tucano. Os nomes dos novos conselheiros seriam apresentados em assembléia.
No dia 4 de maio, Graziella Baggio, então presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas, amiga de Lula desde os tempos dele no Sindicato dos Metalúrgicos, procurou-o com um pedido de ajuda para a Varig. Lula se comprometeu a ajudar. Ele marcou uma nova audiência no Palácio, para o dia seguinte, dessa vez com o ministro da Defesa.
Lula, segundo Graziella, concordou em liberar 70 milhões do BNDES necessários para que a Varig ganhasse fôlego, mas também impôs uma condição: queria ter o direito de indicar alguns nomes para o conselho da empresa. Suas indicações eram José Caetano Lavorato Alves, ex- presidente do Sindicato dos Aeronautas; Jorge Luiz Gouvêa, da Petrus, o fundo de pensão da Petrobras; e Harro Fouquet, o veterano funcionário da Varig. Lula também sugeriu o economista Luís Carlos Afonso, da PT, como diretor financeiro da companhia.
Por volta das nove da manhã, José Alencar ligou para o então presidente do colégio de curadores da Varig, Ernesto Zanata, e falou das exigências do presidente para ajudar a companhia. Zanata pediu tempo para consultar os conselheiros da Fundação. Também contatou Zylbertajin. Este lhe disse que não aceitaria as indicações do governo. Pressionado pelos outros conselheiros entre eles César Curi, que sugerira o nome de Zylbertaijn para a presidência do conselho, Zanata ligou para o vice-presidente e disse que a Fundação não concordara com as indicações de Lula. Alencar alertou-o: “Zanata, manda quem pode, obedece quem tem juízo. Esta é a última chance que vocês terão“. A partir daí, a solução para a Varig ficou atrelada a questão política, e não a considerações técnicas. No sábado, dia 7, em assembléia, a fundação aprovou o nome de Zylbersteijn e dos outros três conselheiros indicados por ele. As sugestões de Lula ficaram de fora. Numa conversa na sede do Sindicato dos Aeronautas, em junho, Graziella reproduziu o diálogo que teve com o presidente logo em seguida: “ O Lula me chamou e me questionou: São essas pessoas que você está defendendo? Fiz de tudo para te atender porque também acho que a Varig não pode acabar. Mas você sabe que não há nenhuma condição de se buscar uma solução para a empresa com esses nomes que foram colocados pela Fundação Ruben Berta“. Ela não se conforma com a atitude da Fundação. “ Como eles podiam achar que o governo apoiaria a companhia depois que eles colocaram os tucanos lá dentro? O único objetivo deles era vender a empresa“, exaltou-se Graziella. De fato, o plano dos novos conselheiros era fazer uma fusão da Varig com a portuguesa TAP. Achavam que dali sairia uma grande companhia que seria forte na rota do Atlântico. A estratégia dos conselheiros era pedir ao governo que financiasse parte da operação. Como garantia, ofereceriam também os tais 4 bilhões de reais da defasagem tarifária do Plano Cruzado. Já o governo português, embora interessado no negócio, não abriria os cofres.
David Zylberstaijn tem uma consultoria na área de petróleo, em Ipanema no Rio. Numa conversa recente, em seu escritório, ele confirmou que a condição que impôs para assumir a presidência do conselho da Varig foi a de poder escolher os nomes dos outros conselheiros, mas garante que nunca sentiu nenhuma má vontade do governo por causa disso.”Logo que assumimos eu pedi uma audiência com o vice-presidente José Alencar e ele prontamente nos atendeu“, contou. Não houve mais, entretanto, qualquer liberação de recursos para a Varig.
Um mês depois de terem assumido o conselho, com a Varig sem mais dinheiro para pagar o combustível, as peças de reposição, os leasings das aeronaves, a alimentação de bordo e os salários dos funcionários, eles entraram com pedido de recuperação judicial na 1ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro. Foi a primeira operação de uma empresa pela nova Lei de Recuperação Judicial, aprovada poucos meses antes.
Pela nova lei, enquanto a companhia estivesse em recuperação as dívidas não poderiam ser cobradas e nem os aviões apreendidos. Zylberstaijn, junto com Omar Carneiro da Cunha, voou para Nova Iorque, onde havia várias ações de retomada dos aviões da companhia, para encontrar-se com o juiz Robert Drain, que cuidava do caso nos Estados Unidos. Os dois explicaram que a nova lei brasileira se inspirara na legislação americana de recuperação judicial das empresas. Algumas companhias aéreas dos Estados Unidos, como a American Airlines, estão atualmente neste processo. “O juiz foi muito compreensivo“, contou Zylberstaijn.
No Brasil, sem conhecer direito a nova lei, os credores se desesperaram. No dia seguinte ao pedido de recuperação, uma enxurrada de execuções fiscais caiu sobre a mesa do juiz Luis Roberto Ayoub. Ele contou que tentou se reunir com os bancos para pedir que dessem crédito para a Varig, já que tinham a garantia de serem pagos prioritariamente. Nenhum compareceu ao encontro. “ Esse tipo de socorro é comum nos Estados Unidos. É isso que permite a recuperação das empresas. Mas aqui, por se tratar de uma lei nova, os bancos não se interessaram“, disse.
Ainda que não fosse obrigada a pagar as dívidas antigas, a Varig precisava de dinheiro para continuar tocando a operação. O quadro se agravava por causa da resistência da Fundação Ruben Berta em fazer a reestruturação. Embora estivesse operando com menos da metade da frota, em torno de cinqüenta aviões, a Varig mantinha seus 1500 pilotos. Omar Carneiro da Cunha contou, recentemente, que era difícil para os funcionários entenderem como uma empresa com faturamento de quase 6 bilhões de dólares por ano não tinha dinheiro. “O que eles não sabiam é que a maior parte do dinheiro da Varig com a venda de passagens ia direto para a conta dos credores“. A saída pata levantar dinheiro seria vender duas grandes subsidiárias, a VarigLog, de transporte de carga, e a VEM, Varig Engenharia e Manutenção. A VEM era a maior empresa de manutenção de aeronaves da América Latina e tinha um hangar no Aeroporto do Galeão onde cabiam até três aviões. Havia dois interessados no negócio, a TAP e o fundo de investimentos americano Matlin Patterson, comandado por um chinês chamado Lap Chan.